04 abril 2006

PARA REFLECTIR

"PARECE que os partidos da esquerda, quando não sabem o que hão de fazer, fazem leis chamadas fracturantes. Não me devotei à estatística de saber se esta é uma regra geral, mas se não é parece.

As leis fracturantes dedicam-se a cortar com um passado, sempre mau, penoso e injusto, com o objectivo de construir um futuro sempre glorioso, radioso e justíssimo. Ainda que a História tenha amiúde desmentido esta galopante caminhada na direcção da felicidade humana, por alguma razão a esquerda acha que deve persistir no tema. Enfim, em muitos casos não vem daí qualquer mal ao mundo.

O tema fracturante actualmente em cima da mesa é a já célebre e requentada lei das quotas femininas. Diz-se que as mulheres participam pouco na política e que, por isso, deve haver uma lei que as obrigue - peço desculpa por este «obrigue» tão politicamente incorrecto, mas é o termo - as obrigue, repito, a participar mais.

É um dos casos em que, verdadeiramente, não vem mal ao mundo - salvo, é claro, pelo facto de abrir portas a um princípio político pouco salutar: o de reconhecer que um país é formado não exactamente por um povo, por um conjunto de cidadãos com direitos iguais, mas sim por subconjuntos que têm em conta o género. Mais tarde, pode ser num grupo social, religioso, sexual ou qualquer outro que se verifique uma sub-representação, levando os mesmos «engenheiros sociais» que agora nos propõem a lei das quotas para mulheres a propor então a lei das quotas para um desses grupos. Ao fim e ao cabo, é algo próximo do corporativismo. Como lei não me faz diferença, como princípio arrepia-me.

CURIOSAMENTE, a sociedade evolui sem pedir autorização aos políticos fracturantes - deve ser um facto que os admira a eles, mas não às pessoas sensatas. Foi assim que nas Universidades as mulheres se tornaram maioria. Em menos de 25 anos. Foi assim, nos jornais, em menos de 15. Vai ser assim nas empresas, nas associações da sociedade civil, nos órgãos de soberania, ou seja, na vida real. Sem qualquer lei, sem qualquer directiva comunitária, sem a intervenção de deputados do BE ou do PS.

É fantástica esta evolução, porque ela não corresponde ao desejo de ninguém em particular, mas a uma evolução inorgânica, a uma concepção moderna em que as mulheres são progressivamente mais qualificadas, mais respeitadas, mais intervenientes. Ao contrário, os partidos que propõem as quotas estrebucham. Querem ser eles a dizer que as mulheres têm acesso aos lugares que «eles» lhes disponibilizam. A vida há-de responder-lhes."
Henrique Monteiro in Expresso